segunda-feira, 9 de março de 2009

Águas de março

Ajusta a chave pra posição verão. Deixa a água escorrer da nuca até o tornozelo passando pelas costas e por aquele vão atrás dos joelhos. Arrepio. Água fria, ou quase. Corpo quente, ou quase, dá nisso. Arrepio.

No chuveiro, ela pensa. Sempre faz isso. Mentira. Nem sempre, porque “está acabando a água no planeta”. O mundo em perigo está ficando cada vez mais chato. Me preocupo com ele amanhã. Hoje preciso de banho sem cronômetro, divaga.

Levanta a cabeça. Com a água na cara, lembra a cena de Psicose. Pouco antes de ser atacada, a moça embaixo da ducha olha para cima. A câmera é que olha, e continua seca. Ela nunca entendeu aquilo. Mas quem disse mesmo que tudo precisa ser compreendido?

Olhando agora para os azulejos da parede, ela se toca que a vida toda eles estiveram lá. Nem precisa fazer conta. A vida toda é isso mesmo. Desde que se lembra, era aquela imagem meio marrom, meio laranja. Feio, pensou.

Em poucos segundos já nem pensa no desenho, no padrão ou se o azulejo, e mesmo o banheiro, são bonitos ou não. O que a imobiliza por alguns instantes é o “a vida toda”. É tempo demais.

E, de repente, tem medo de imaginar por quanto tempo ainda duraria aquilo. Já estivera em outros chuveiros. Em um ou outro, por dias e meses seguidos. Sabia que poderia sempre voltar para aquele. Mas e quando não quiser mais? E se um dia não puder mais?

O que preocupa, na verdade, é a possibilidade de ficar pra sempre naquela vida. Não só naquele chuveiro, mas no seu quarto, nas suas roupas, na sua vida. Como naqueles filmes em que a pessoa acorda e revive o mesmo dia eternamente.

O problema é que talvez ela não saiba como gostaria que fosse o dia em que não for mais assim. Ela se sente confusa. E um pouco triste. E com vontade de ir não sei pra onde, fazer não sei o que.

Banho tomado. Fecha o chuveiro e fica ainda alguns instantes, pensando. Ela sempre fazia isso. Desde quando era pequena demais pra virar a chave sozinha pra posição verão. Faz muito tempo. Tempo demais.

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