Dançando na folha pautada, as letras maiúsculas meio tortas e escritas a lápis anunciavam: “TARA”.
_ Olha só, hein Dona Márcia! A senhora escreveu mesmo! – disse um pouco desconcertada e torcendo para que a minha aluna mais doce e também a mais velha, com seus 78 anos, não me perguntasse o que aquilo significava.
_ E eu sei escrever isso também – disse-me enquanto rabiscava com alguma dificuldade, um ponto de exclamação ao final da sua Tara.
_ Vi na TV.
Na “Rede TV!” imaginei, desejando dizer que escolhesse melhor o que fazer com seu tempo livre. Mas logo desisti do conselho porque não saberia o que sugerir a ela que sorria encantada ao olhar para o caderno.
Dona Márcia, na verdade se chamava Maria. Ganhou o apelido porque na família eram muitas marias. O Márcia lhe garantia uma diferenciação e exclusividade em meio à parentada.
A divertida senhora tinha uma alegria que eu, honestamente, jamais tinha presenciado. Com o otimismo de quem projeta futuro e vida longa, decidira se alfabetizar quase aos 80. “Porque agora sobrou tempo”, explicou.
Sua histórias encantavam as noites naquela sala de Alfabetização de Adultos. Nós, Jonathas e eu, os “professores” e todos os outos alunos adorávamos ouvi-la. Baixinha, nem muito magra ou gorda, com seus grisalhos e ondulados cabelos displicentemente presos num rabo de cavalo, Dona Márcia sempre chegava para a aula usando saias e blusas muito coloridas que comprava na feira de domingo ou ganhava de alguém.
Junto com ela, vinha sempre aquele brilho e a alegria que, para muitos, era inexplicável. Era pobre. Muito pobre. E praticamente solitária. Perdera o primeiro filho ainda na gestação porque o marido lhe chutara durante uma briga. Os outros, moravam longe, nunca a visitavam e praticamente não davam notícia. Sua ingenuidade rendia histórias incríveis que ela contava com uma naturalidade rara e invejável. E, por mais triste e dura que fosse a realidade, ela sempre encontrava o lado bom em tudo.
_ Gosto tanto do menino do açougue.
_ Eita, Dona Márcia!! Já tá de olho em outro, né? – brincava com a paqueradora senhora.
_ Não, Dã. – respondia rindo muito _ Gosto dele porque ele nunca liga de me dar alguma coisa. Ontem fiz uma sopa de osso. Hummm.
Sim. De osso. O “menino do açougue” era mesmo muito bonzinho e quando ela ia pedir algo para jantar, ele lhe dava os ossos que, se não fossem para o prato da minha aluna, iriam para algum cachorro ou para o lixo mesmo.
Teve também aquela noite em que falávamos sobre eleições. Era véspera da votação e estavam todos ansiosos porque iriam, pela primeira vez, assinar o nome ao invés de usar a constrangedora almofada de carimbo. E lá vinha Dona Mária com uma das suas:
_ Ah, eu sempre voto! Tem um menino lá tão legal, Dã. Ele sempre me diz direitinho que número eu tenho que apertar. Ele me ensinou e eu vou lá e aperto o 1, depois o 1 de novo.
_ E em quem a senhora votou, Dona Márcia? – perguntei, me corroendo.
_ Ai, não sei, mas ele disse que o candidato é o melhor. – me dizia feliz e dando sua característica piscadinha.
Mas o dia em que fiquei realmente tocada, foi quando, no meio da aula, ela disse que precisava falar comigo. “Preciso de um conselho”, cochichou enigmática.
Quando todos foram embora, eu, confesso, ansiosa por uma de suas histórias incríveis que seria contada exclusivamente para mim, me aproximei, sentei ao seu lado e disse:
_ E então, querida, qual é o problema?
_ Dã, é o meu namorado.
_ Sei. O que tem ele? – disse tentando disfarçar o espanto. Ela, quase uma octogenária, estava me pedindo conselhos sentimentais. Justo para mim, uma “analfabeta” no assunto.
_ É que eu não sei se vai dar certo. Ele é muito novo. Tem “só” 66.
_ Ahhhh, Dona Márcia. É isso? Imagina! Se a senhora gosta dele, isso não é um problema. Ele é legal?
_ É sim, Dã. Gosta de mim, trabalha, é bonzinho, me dá cada beijo! Hum. – respondeu com aquele olhar meio sacana que contrastava com sua figura tão ingênua e me fazendo entender que nós mulheres, queremos as mesmas coisas. E para sempre!
_ Viu?! Não precisa se preocupar com a idade.
_ É né? Então tá, vou falar para ele que ele pode vir morar na minha casa. Assim ele economiza no aluguel e me ajuda.
Fui embora surpresa e me divertindo com mais essa novidade da Dona Márcia. O namorado estava indo morar com ela. Quem diria.
O tempo passou, eu tive que deixar a alfabetização, mas ainda a encontrava de vez em quando com aquele sorriso e com aquelas histórias deliciosas.
Dona Márcia já ia às aulas há quase dois anos quando soube que ela estava doente. Dias depois quando a encontrei, ela não sorria. Foi a primeira vez que eu a vi triste.
_ Ei!! Que carinha é essa? Fiquei sabendo que a senhora não anda muito bem. O que aconteceu?
_ Ah, Dã. É o meu namorado. Peguei o filho da puta com outra. - nervosa ela falava palavrão, constatei.
_ Jura? Mas por isso a senhora ficou doente?
_ Ah, filha, eu fico muito brava. Ele veio morar na minha casa, né? E faz um negócio desses? Não tá certo, viu? Não tá!
_ É. A senhora tem razão, mas não pode ficar doente por causa de homem!, - disse, como se eu mesma nunca tivesse tido uma febre ou dor de barriga pelo mesmo motivo.
_ Dã, passa lá em casa. Tenho uma blusa minha que eu quero te dar.
_ Tá bom, querida. Se cuida, hein? - e a beijei desconfiando se sua blusa da feira me cairia bem
_ É. Eu vou ficar boa. - respondeu com um sorrizinho agora bem tímido ao contrário daqueles enormes que exibia normalmente.
Mas ela não ficou bem. Dona Márcia morreu de enfarto no chuveiro alguns dias depois. O namorado traidor a encontrou nua e caída no banheiro.
Eu nunca fui buscar a blusa. E me arrependo tanto... Ainda que ficasse enorme e o modelo não me agradasse, teria passado mais uns minutinhos com uma das mulheres mais surpreendentes que já conheci. E ela, sem saber, me ensinou muito mais do que eu, que não consegui lhe passar quase nada além daquele “TARA!” que inaugurou seu caderno. Não que ela não aprendesse. Ela era sim, muito sábia. Mas não sabia.
Pensei em escrever sobre a Dona Márcia depois de ver O Leitor há alguns dias. Só estava me preparando. Lembrar dela, dá muita saudade. Mas, enfim. Vejam o filme.